
Do Luto à Luz: O Relógio que Aprendeu a Bater de Novo
A primeira noite foi de silêncio. Não o silêncio sereno das madrugadas antigas, quando o ronco suave de Pedro a fazia sorrir no escuro, mas um vácuo gelado que engolia até os ponteiros do relógio.
Ana apertou o travesseiro contra o peito e cheirou — o último vestígio do perfume dele ainda grudado no tecido. Foi quando entendeu: o luto não começaria no cemitério, mas ali, na cama vazia onde seu corpo insistia em procurar um calor que não existia mais.
No dia seguinte, Ana acordou cedo e seu olhar pousou no relógio de bolso de Pedro em cima da cômoda — aquele que ele carregava todos os dias, mesmo depois de os celulares terem substituído quase tudo. Os ponteiros estavam parados às 14:37, a hora exata em que o coração dele havia se rendido.
Os meses seguintes foram de ausências que doíam em detalhes: o café da manhã (com mesa posta pra dois, um hábito teimoso) que embaçava na garganta. As vizinhas falando baixo e às vezes encarando no mercado, como se a dor fosse contagiosa.
A folha seca que grudou em seu casaco, idêntica à que Pedro apontara anos antes, brincando que “até as árvores mandavam cartas de amor”.
O primeiro passo veio de um lugar inesperado: o vaso de violetas na janela. Pedro o regara na véspera do infarto. Quando as pétalas roxas floresceram sem ele, Ana entendeu: ainda havia beleza. Ainda havia vida.
E foi ali, naquele gesto singelo da natureza, que o relógio voltou a bater — não o da parede, mas o dentro dela.